Para Não Dizer Que Não Falei De Sushi

Quando criei o blog, há muitos anos, decidi que não iria escrever sobre sushi. Voltando do Japão, depois de 16 anos, vi que as únicas coisas que o brasileiro conhecia da cozinha japonesa eram o sushi e o sashimi. Há um mundo de outras coisas boas além desses dois pratos, coisas que muitos jamais iriam ter a chance de provar, pois são pratos domésticos, que não costumam aparecer no cardápio dos restaurantes.

O outro motivo é que já havia gente demais escrevendo bobagens a respeito do sushi.

De vez em quando alguém me pergunta se já fui em um rodízio, que rodízio de sushis eu recomendo. Diante do meu olhar, houve quem dissesse: “Ah, você precisa deixar o preconceito de lado, é só um fast-food.”

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O sushi, mais ou menos como conhecemos agora, surgiu como fast-food. Eram bem maiores do que os nigiri de hoje mas era comida de rua. Como o mestre Masayoshi Kazato lembrou, “Era fast food muito antes de surgir o Mc Donald’s.” Sob esse aspecto, tenho experiência. Trabalhei 2 anos em uma indústria de alimentos e uma das minhas tarefas era o de produzir inarizushis (o tal sushi “de saquinho”) e makizushis (sushis enrolados). A quantidade era absurda. Em alguns dias chegava a produzir 3 mil inarizushis e 600 rolos de makizushis. De vez em quando tinha a companhia de uma outra pessoa mas às vezes eu trabalhava sozinha.

Como era possível? Automação. Uma outra unidade produzia todo o arroz cozido que usávamos, inclusive o arroz para sushi. Uma máquina estendia o arroz sobre um rolo contínuo de alga e os operadores tinham que observar se havia falhas na distribuição, acomodar o recheio, conferir o peso das amostras e contagem das porções. No caso do inarizushi, um operador colocava os pedaços de ague de um lado e outro retirava, conferindo o pêso e dando o formato final. Nessa máquina quase perdi meu dedo.

Esses sushis eram acomodados depois em bandejas e embalados. Eram comercializados em lojas de uma rede de fast-food. De certa forma se assemelham às bandejinhas que encontramos nas mercearias da Liberdade.

Alguém estará pensando: “Feito por máquina, deve ser horrível”. Não eram ruins, não. Melhores que os que já provei dessas bandejinhas, aqui no Brasil. Afinal, lá era feito com arroz Koshihikari, vinagre de arroz bom, alga nori de uma qualidade que não costumamos encontrar aqui. E lá o público é mais exigente, tem mais conhecimento e se for muito ruim, simplesmente não compra, porque existe muita oferta. Esses robôs já chegaram ao Brasil há muito, é provável que já tenha comido algo feito por um desses por aqui.

Por falar em oferta, esses tipos de sushis podem ser encontrados em supermercados, peixarias ou lojas de redes. São bem convenientes. O almoço leve e barato está sempre garantido. Ou o lanche para o piquenique. É algo que quase todo mundo come mas ninguém irá discutir apaixonadamente por isso. Eu gostava do que faziam em uma peixaria, pena que era um lugar meio fora de mão, do outro lado da cidade.

“Ah, mas obento não é a mesma coisa que comer num restaurante”.

Sim, existem restaurantes fast food que oferecem sushi no Japão. Podem ser lojas pequenas, atendendo o cliente no balcão, poucos funcionários. O cliente pede, recebe o par em um pratinho e no final, um funcionário contará a quantidade de pratinhos e, conforme a cor deles, fará o cálculo da conta. Também existe o sushi em pé (Tatizushi). Come-se em pé, nem cadeira tem. Em alguns casos, o cliente escolhe o que quer comer simplesmente escolhendo fichas e pagando antecipadamente. Depois é só encostar no balcão e ser servido. Aqui nesta página há um artigo (em japonês) e as fotos dão uma ideia do serviço:

http://trendy.nikkeibp.co.jp/article/pickup/20080512/1010870/

E, claro, os populares kaitenzushi, onde as opções percorrem uma esteira (se não quiser esperar, pode fazer o pedido em um painel digital). E não oferecem só sushis. Como o público-alvo é a família com filhos, costumam oferecer também massas, batata-frita, gratinados, doces. É que sushi não é bem um prato que agrade a criançada. Também costumam ser baratos, geralmente são unidades de rede ou seja, todos os itens utilizados saem de uma unidade central, padronizada. Muita gente frequenta, sai satisfeito, paga pouco (mesmo para os padrões daqui). Não vai ver ninguém enrolando um sushi na sua frente, nem vai ter um atendimento primoroso, mas isso mantém os custos baixos.

A esta altura deve ter gente se perguntando porquê algumas casas de sushi cobram tão caro, se existe tanto sushi barato. Tanta diferença de preço só por causa do ambiente e atendimento?

Não. Em uma casa especializada em sushis, dessas que os japoneses só vão poucas vezes na vida, espera-se algo mais. Espera-se um arroz cozido à perfeição, nem muito mole, nem muito duro e nem tão pegajoso, no ponto certo de cozimento e hidratação. O grão pode ser exclusivo da casa, produzido por um agricultor extremamente comprometido com a qualidade. Espera-se também que cada um seja modelado na pressão certa, de modo que os grãos se soltem na boca. Que nem o vinagre, nem o sal e nem o açúcar estejam em desarmonia. E os frutos do mar, claro, estejam bem tratados.

E não, nem todos os peixes de uma casa de sushis são frescos.

Isso mesmo, nem sempre o peixe do sushi é fresco. Não se espante, você não é o único a ignorar isso. Aliás, a maioria das pessoas não sabe (ou pelo menos, é o que me parece, a julgar pelos comentários sobre diversas casas paulistanas). Muitos peixes ficam melhor depois de maturados, em processo que se assemelha à maturação das carnes.

Claro que partem sempre de peixes frescos porque é possível melhorar as características de um produto já bom. No entanto, nem sempre é possível corrigir defeitos de uma peça ruim. Cada peixe passa por um processo. Primeiro é lavado, filetado, enxuto, num processo chamado “ti-nuki”, ou seja, extração de sangue, já que as vísceras e o sangue do peixe são as primeiras partes a entrar em decomposição e produzir um cheiro ruim. Uma peixaria ou uma casa de sushi no Japão sempre um consumo grande de água.

Em alguns casos, recebe uma certa quantidade de sal e é deixado descansar por um tempo. Em outros, é marinado em shoyu ou em vinagre. Existem diversas técnicas para diversos peixes, que são utilizadas conforme as características do peixe e que exigem experiência e observação. Não me arrisco a escrever sobre isso. É um conhecimento que não tenho, nem a prática. Só posso dizer que um atum, devidamente curado, torna-se macio, delicado, sem cheiro marinho, rico em “umami” e muito agradável. Muitos ficariam surpresos se soubessem que é um peixe de vários dias.

Uma pausa porque me lembrei de um lugar onde exibia no balcão uma posta grande de atum cinzento, uma aparência muito triste. Não, um atum devidamente curado tem cor bonita e viva, aquilo era outra coisa.

Obviamente alguns itens são melhores quando bem frescos, como camarões e ouriços, por exemplo.

Bem, então, e o rodízio?

O rodízio é algo bem brasileiro. Eu classificaria como um fast-food. Mas não de comida japonesa. O que chamam de restaurante “japa” não é japonês, está mais para nipo-americano. Muita coisa veio da América do Norte. Não que no Japão não existam umas coisas estranhas, como sushi com hamburguer. A diferença é que lá continua sendo mais uma esquisitice que talvez não pegue. Aqui já virou padrão, como o sushi com queijo cremoso, que consegue destruir a textura de qualquer arroz, transformando-o em uma massa grudenta e engordurada.

Abro um parênteses para esclarecer que muitos japoneses e descendentes não gostam de ser chamados de “japa”. A expressão remonta a Segunda Guerra Mundial e era uma expressão pejorativa. E descendentes de japoneses (nisseis, sanseis e yonseis) são brasileiros, não são japoneses.

Bem, conheci um rodízio sim. O lugar era bonito. Ofereceram-me pastel, casquinha de siri lotada de azeite de dendê. Nada bom. Coisa para oferecer para quem não gosta de sushi e que foi lá só para acompanhar os amigos. Provei a anchova grelhada, prato que não exige muita técnica. Errei. Exige alguma, sim. Estava sem sal e sem gosto. Com um pouco de cuidado seria algo bom. Não tinha sashimi, só “carpaccio”, com muito limão e azeite. Então vamos ao sushi, certo? Já que todo o resto não era japonês…

Provei um nigiri. O arroz estava pegajoso, o gosto era desagradável. Provei um makizushi. Idem. Parecia que o arroz havia sido sovado, parecia coisa velha e em dois minutos já não queria comer mais nada, tamanha a má-impressão que tive.

A coisa já estava ruim no geral. Mas faltava a cereja do bolo. Um dos sócios veio falar comigo e contou a piada infame no “issei, nissei, sansei e não sei”. Sempre que ouço essa piada tenho vontade de dizer: Eu sou nissei, sei as minhas origens e quem é o meu pai, ao contrário do senhor.

Um restaurante é só um negócio, certo? Não se exige respeito pela cultura alheia para abrir e tocar um.

Agora volte ao segundo parágrafo deste post. Sim, tem muita gente falando besteira. Tanto que o lugar é bem recomendado.

Alguém poderá até dizer: mas tem muito descendente que frequenta rodízio. Claro. Assim como tem muito descendente de japonês que come pizza, feijoada, buchada. Gosto é gosto. E muitos não tiveram contato com a cultura japonesa. Eu mesma, só fui aprender japonês quando fui ao Japão. Cresci distante tanto do idioma quanto da cultura em geral, tirando algumas festas populares. Filmes, programas de tv e até mesmo música japonesa eram coisas difíceis de ter acesso na década de 70, 80. Não é à toa que muita gente achando que é aquilo mesmo. E se convence mais ainda quando lê alguém dizendo que “aquilo” é maravilhoso.

Provavelmente jamais voltarei a tocar nesse assunto. Não pretendo posar de defensora nem ter uma atitude terrorista. Muito pelo contrário, defendo que todos comam o quê e como quiserem. Só não concordo que as pessoas consumam uma coisa pela outra, acreditando que está comendo “num japonês de verdade” e se fiando no fato do “sushiman” (no Japão a expressão é itamae) ter dez anos de experiência. Experiência em rodízio? Pode significar zero experiência em cozinha japonesa.

E para terminar, sim, eu faço sushi em casa. Mas nunca fiz nigirizushi. É algo que demanda muita experiência e prática, não vou me impingir o sofrimento de comer um sushi ruim. Existe um universo de sushis que costumam aparecer na mesa doméstica. Provavelmente o mais popular é o tirashizushi, um sushi espalhado em um prato. Eu gosto muito e permite uma infinidade de combinações. Também costumo fazer makizushis ou seja, os enrolados em nori, que também não são tão difíceis de fazer e fazem parte de muitas confraternizações familiares. Alguns eu gostaria de fazer, como o Sasazushi (embrulhado em folhas de Sasa, uma planta parecida com o Caeté), assim como outros sushis embrulhados em folhas (como folhas de caqui, por exemplo),  sushis prensados, pouco comuns por aqui, o temari, que é uma bolinha, popular em obentôs (marmitas) e que acho que ficam ótimos também em coquetéis.

 

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12 Responses to Para Não Dizer Que Não Falei De Sushi

  1. Diulza Angelica dos Santos diz:

    Aff desta vez foi uma pagina de jornal,brincadeira.Marisa não gosto de rodizio de nada salve,salvo de vez e nunca quase o de carnes.Como não gosto de Self service,acho pouco higiênico.nunca fui em rodizio de Sushi,diga se os temaki suhi e outras não anda nada bom arroz duro horrível,por isto desisti,outro dia achei um atum fresquinho e fiz aquela sua salada.inclusive poderia nos agraciar com umas receitas de peixes.Pois tenho que seguir uma danada dieta,e to perdidinha pois sei a comida caipira caseira,do resto fico fazendo receitas de outros pra mudar um pouco.bjs bOM CARNAVAL.

    • Marisa Ono diz:

      Aqui ando com os dias cheios, durante a safra de castanhas aproveito para fazer castanha em calda, miso de castanha, pasta de castanha para os doces. Só que é um trabalho monstruoso cozinhar, tirar a polpa cozida, moer. Para a semana preparei uns pães, vou publicar a receita e estava pensando em um texto ou video sobre os cortes de vegetais, o pessoal não conhece os nomes, há muito estou ensaiando isso.

  2. Pingback: Uma leitura obrigatória para todos | Alhos, passas & maçãs

  3. Até que enfim alguém que concorda comigo! Eu, sendo criada e tendo vivido durante 20 anos no Japão, não gosto desses rodízios de “comida japonesa” que existem aqui. Quando digo que não gosto dessa comida oferecida, me chamam de chata e fresca. Triste dessas pessoas que não sabem o que é um bom arroz japonês, tão saboroso que não precisa mergulhá-lo em shoyu pra comer.

    Parabéns pelo texto e pelas receitas, Marisa! Sou sua fã!

  4. Lucia diz:

    Tenho a tremenda sorte de conhecer um Itamae de verdade, de um restaurante despretensioso na Liberdade.
    Japonês tradicionalíssimo, treinado no Japão, seus sushis estão sempre no ponto certo, com o arroz bem feito e bem temperado, nem muito solto nem amassado. Os temakis são do tamanho e com a quantidade perfeita, ingredientes coesos, nada das monstruosidades que andam fazendo por aí.
    Discreto, não sai na Vejinha nem na Paladar.
    Recentemente me ligou para avisar que tinha chegado um toro bem bonito. Cheguei feliz, sentei direto no balcão. Enquanto preparava a iguaria, ele confessou quietamente que tinha escondido o peixe de um cliente que costumava pedir toro com cream cheese. Preferiu me ligar.

  5. Lia diz:

    Sou leitora de muito tempo do site e gosto muito das suas observações e os textos sobre comida japonesa – sempre que eu leio eu penso em comentar sobre o canal cooking with dog , que tem também as receitas do jeito que você coloca, mas em vídeo – as receitas caseiras japonesas (https://www.youtube.com/user/cookingwithdog) . Interessante que eles também tem videos de sushi mas como você comentou, não tem de nigirizushi pelo mesmo motivo que você disse – não é algo que se faz rotineiramente em casa

    Gostei muito do texto .

  6. christopher diz:

    deve ter mais gente(amadores) fazendo nigirizushi aqui do que no Japão.
    Definitivamente não é uma boa pedida nem boa idèia.
    Nosso peixe tá longe de ser uma maravilha, o sujeito quer adiantar os preparos e começa a manusear o peixe várias horas antes dos convidados chegarem e deixa tudo em temperatura ambiente. Pior ainda quando o sujeito ACHA que sabe manusear peixe e acha que tem noção suficiente de higiene para evitar contaminações.
    eu sempre digo, o que pode acabar numa dor de barriga para um, pode levar o outro ao hospital.
    sempre recomendo temaki, bem menos manuseio com o peixe, limpou, cortou e vai pra geladeira até todo mundo sentar. Quem prepara não cansa, consegue participar do evento e o melhor, é divertido com cada um fazendo o seu.

    abs

  7. christopher diz:

    outra coisa, pelo menos aqui no Rio.

    restaurante do comida japonesa uma ova!
    99% deveria colocar restaurante de comida TIPO japonesa, alguns nem isso.

    e realmente tem gente falando muita besteira sobre sushi, alguns até que se esforçam mas dão umas escorregadas feias e daí quando são questionadas respondem dizendo que aprenderam com grandes chefes bem conceituados, de gente que está no ramo há anos.

    sei…

    • Marisa Ono diz:

      No interior é mais problemático ainda, Christopher. Existem poucos restaurantes japoneses, muitos são “orientais” ou “asiáticos” e já vi até quem oferecesse pizza também. Tocados por gente que viu um DVD, sabe.

    • Marisa Ono diz:

      Aliás, discutir e avaliar rodízio e temakeria me dá um tédio. Seria como discutir a qualidade de uma rede de fast-food (e olha que tem gente que afirma que o sanduíche da rede, lá no Timbuctu é melhor, bla-bla-bla).

  8. Marc Maeda diz:

    Olá Marisa,em primeiro lugar,meus sinceros respeitos e parabéns pela maneira que se espressa sobre a Culinaria Japonêsa,eu sigo seu Blog há 4 anos,e encontrei atravez de uma pesquisa que fiz buscando receita pra molho de Yakiniku,desde enão virei um Fã assíduo do seu trabalho…bom,viví durante 21 anos no Japão,sou apaixonado pela Culinária desde meus 9 anos de idade,mas exerço profissionalmente desde meus 35,e confesso que fazer Sushí aqui no Brasil por diversas vezes me sentí chocado..rs..um enorme abraço!

  9. Luara diz:

    Marisa, que maravilha de texto!
    Nossa, como é bom ler o que acabei de ler.
    Muito obrigada por compartilhar tanto!

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