Acabou. Veio uma sensação de alívio e um certo cansaço.
Foram dias intensos, desde muito antes da oficina em si. Da euforia pelo convite, passando pelo cuidado com os detalhes (escolha das receitas, se daria para dizer tudo o que queria no tempo estipulado, na organização dos itens para levar, quem iria me ajudar), até o dia em si. Pode não parecer, mas sou uma pessoa introvertida. Falar e falar em público exige de mim um esforço extra. Eu só consigo quando estou realmente segura do que digo, conheço bem o assunto.
Fiquei muito aliviada quando vi que os convites haviam se esgotado. Foi uma sensação de vitória, também, porque o horário era no sábado de manhã, concorrendo diretamente com as feras Neide Rigo, Ana Soares, Mara Salles e o Luiz Américo Camargo. Mas eu iria ainda ter outra surpresa. Pensei que eram só 15 vagas mas eram 25…
Eu queria mostrar as possibilidades do missô, esse ingrediente tão pouco explorado fora das cozinhas japonesas (e porque não dizer, até mesmo dentro delas?) no Brasil. Queria falar dos imigrantes e descendentes, dos brasileiros de olhos puxados. Das necessidades e adaptações também. Claro que gostaria de muito mais, mas acho que consegui chegar bem perto, na hora e meia que eu tinha.
As receitas foram escolhidas depois de pensar. Lamento, não sou do tipo de cozinha pela emoção. A receita começa na cabeça, na seleção do ingrediente principal, haviam motivos para selecionar o chuchu, o filhote e o frango.
O chuchu é algo que costumava ter em qualquer quintal, vegetal tão desprezado mas que os imigrantes enxergaram uma semelhança com o uri (uma espécie de melão) com o qual faziam suas conservas. Era farto – ninguém iria gastar muito dinheiro com conservas – e a textura ficava boa. Depois é que percebi que eu fui muito ousada em fazer as pessoas provarem chuchu cru. E, felizmente, gostaram.
O filhote veio da lembrança de que parentes gostavam de pescar e traziam peixes de rio. Esses peixes eram fritos, salgados, secos e também marinados no missô para perder o cheiro de barro. O filhote não tem cheiro de barro mas é um peixe amazônico, região que recebeu os primeiros japoneses em 1929. Muitos sucumbiram nos primeiros anos, pela malária. De certa forma, queria prestar uma pequena homenagem a estes, que tiveram que aprender a lidar com a selva, as enchentes, com o clima e adaptaram suas vidas e forma de cultivo a esse ambiente tão diferente ao que estavam acostumados.
Eu também queria mostrar que teriyaki não é um molho ou um prato, é uma técnica. E eu sei que muita gente tem ódio do frango, o cheiro de granja dele não atrai muita gente. Por isso mesmo marinei ele no missô: para mostrar o poder transformador dessa pasta de soja fermentada. Em dado momento, cheguei a testar combinações como missô com alho, gengibre, etc. Mas acabei ficando só no missô mesmo, um prato só com 4 ingredientes, enxuto, direto, básico, minimalista, porque a cozinha japonesa é assim, sem muitos elementos.
Claro que faltou falar sobre muitas outras coisas e aproveito para responder tudo aqui.
Peixe marinado no missô pode ser seco?
Secar o peixe salgado por uma noite (no “tempo”) ou na geladeira por um dia ou dois é um recurso para alterar a textura e o cheiro do peixe. Nunca fiz com missô, eu iria preferir fazer isso com shoyu e um pouco de mirim ou numa salmoura forte (tão salgada quanto a água do mar). E não precisa marinar, é só banhar os filés ou postas de peixe nessa mistura e deixar secar sobre uma grade na geladeira ou dentro de uma tela (para evitar moscas), ao ar livre.
Conservas no missô precisam ficar na geladeira?
Não, não precisam, se os vegetais forem bem salgados, prensados e perderem boa parte da água. A quantidade de sal é suficiente para preserva-los. Só evito mantê-lo em lugar sujeito a alterações de temperaturas bruscas, com perto de uma janela ou fogão. Prefiro um lugar mais escuro, livre de correntes. Com o tempo, a conserva vai ficar mais escura e salgada e há quem goste assim mesmo.
Posso reaproveitar o missô das conservas?
Na verdade, mantenho um pote cheio de missô com vegetais curando nele. Vou tirando e colocando conforme o consumo. Em dado momento, o missô vai ficar mais líquido. Aí é melhor trocar por um novo. Isso vai depender muito do consumo.
Posso reaproveitar o missô das marinadas?
Sim, pode. Mas só tome cuidado para não usar a mesma marinada para diferentes carnes ou com vegetais, para não ocorrer uma contaminação cruzada. Claro que depois de um tempo a marinada fica muito aguada, sem sabor. Mas dá para aproveitar pelo menos umas 3 vezes.
Missô artesanal X industrializado
Missô industrializado pode ser bom. Para mim, a questão maior é a pasteurização. Um missô não pasteurizado contém enzimas (umas 6, se não me falha a memória) que vão agir sobre as fibras de proteína, vão alterar o sabor, a textura das carnes. Na falta de um missô não pasteurizado, eu acrescentaria um pouco de sakê não pasteurizado (as enzimas estão lá, junto com o fermento) que também é um pouco difícil de encontrar ainda, porque tem que ser mantido sob refrigeração o tempo todo. Tanto no industrializado quanto no artesanal, existem também açúcares (no plural, podem ser até nove) que não só adoçam e douram a carne como retêm água. Por isso uma marinada no missô fica tão diferente de uma cura só com sal.
Posso substituir o melado por outro açúcar?
Sim, no teriyaki, pode usar mel, mirim, glucose de milho (mais conhecido como Karo), maltose (xarope de trigo). Esses três últimos irão dar mais brilho e uma cor avermelhada ao prato, bem atraente.
Como o missô é feito?
Eu publiquei há muito tempo aqui:
http://marisaono.com/delicia/2009/09/27/misso-passo-a-passo/
E outros fermentados a partir do koji:
http://marisaono.com/delicia/2013/03/25/koji-outros-fermentados-alem-do-shoyu-e-do-miso/
E outras tantas receitas com missô estão aqui:
http://marisaono.com/delicia/tag/miso/
E por fim, não mais importante, aproveito aqui para os agradecimentos.
Em primeiro lugar, ao Paladar, toda a equipe e patrocinadores que tornaram isso possível, que me proporcionaram a oportunidade de falar de um ingrediente que gosto muito e dos hábitos dos descendentes de japoneses no Brasil.
Agradeço também ao público que foi ótimo, tão curioso, tão interessado, envolvido e que fizeram da oficina um momento de experiências e não uma aula chata.
Agradeço a Sonia Yuki Yamane e Telma Shimizu Shiraishi que foram lá, me ajudaram nas degustações, na apresentação dos pratos para a produção das fotos, no apoio moral.
E agradecimentos especiais ao pessoal que foi designado para me dar assistência, providenciar tudo que eu precisava, vocês foram ótimos.
A cobertura completa do evento, receitas, fotos, etc vão estar no caderno Paladar do jornal O Estado de São Paulo na próxima quinta-feira. Não percam!