O texto de hoje não é sobre comida, mas sobre um aspecto social e cultural da família japonesa. Não vai ser uma leitura muito agradável. Na verdade, será um tanto quanto incômoda.
O primogênito, não raramente, era o único herdeiro, em diversas culturas. Não era diferente no Japão. Caberia a ele manter o sobrenome da família vivo e o patrimônio, caso houvesse.
Era natural que ele recebesse atenção especial. Akio Morita comentou que ele tinha um quarto só para ele e outras regalias. Em famílias com menos recursos, ele seria o único a frequentar uma faculdade, por exemplo. Também seria desobrigado de tarefas domésticas, para ter mais tempo para estudar, por exemplo. E provavelmente andaria melhor vestido que seus irmãos.
Em outras épocas, também seria melhor alimentado, teria uma porção de arroz e peixe maior que seus irmãos mais novos.
E como era a vida dos irmãos mais novos?
Dependeria muito da condição social da família. Em famílias com menos recursos, os irmãos mais novos teriam pouco estudo e trabalhariam desde tenra idade. Em muitos casos, poderiam ser vendidos.
Sim, era uma prática bem comum até o final da Segunda Guerra Mundial (embora ainda fossem relatados casos depois disso). As famílias vendiam seus filhos mais novos e eles iriam trabalhar em fábricas de vidro, siderurgias, tecelagens ou trabalhar como empregados domésticos. Poderiam trabalhar por um ano ou até completar a maioridade, dependia do acordo e do valor recebido. A maior parte dessas crianças tinha menos de 14 anos de idade. Para as meninas, o destino poderia ser ainda pior: poderiam ser vendidas a prostíbulos, de onde sairiam doentes ou mortas.
Essa prática japonesa veio para o Brasil com os imigrantes. Sim, é um choque, não? Mas nesses 50 anos de vida, ouvi e vi muita coisa. Conheci algumas pessoas que foram entregues à familiares, trabalharam como empregados domésticos a troco de casa, comida e escola. Alguns trabalharam na agricultura ou em oficinas, pequenas indústrias, também a troco de um teto.
E em muitas, muitas famílias, vi o primogênito receber toda a atenção, todos os recursos da família. Vi alguns filhos mais novos não terminarem seus estudos, desestimulados pela própria família, pressionados a trabalhar cedo e ajudar nas despesas familiares porque “quem não trabalha, não come”.
O primogênito geralmente é apresentado como o mais inteligente. Os filhos mais novos, são burros. Bullying começa em casa. Não raramente, o filho mais velho tratava os mais novos como empregados ou seus escravos particulares.
Alguns jovens fugiram de casa, romperam com a família.
Mesmo no Japão de hoje, vi que o primogênito ainda goza de prestígio. Alguns tentavam justificar, dizendo que caberia a ele cuidar dos pais quando eles ficassem velhos. No entanto, nem sempre isso acontece. Em alguns poucos casos extremos, soube que os pais foram expulsos da própria casa.
Pouco se fala sobre isso. A imagem que muitos têm da família japonesa é de harmonia, com crianças bem cuidadas e educadas. Para mim, o amor maternal/paternal é algo mais cultural que natural, biológico, orgânico. Aparentemente, o japonês sofre calado. Talvez isso explique alguns casos de suicídio por lá. Crescer sendo tratado como um indivíduo de segunda classe não é para qualquer um.
Obviamente, não estou dizendo que isso acontece em todas as famílias japoneses e nikkeis. Mas que é mais comum do que se pode imaginar, isso é.
Para quem quiser saber mais sobre o assunto, sugiro que assistam à novela “Oshin”. É da década de 80, creio eu. É longa, triste, dolorosa mas bastante real.
Para ler, The World of Child Labor: An Historical and Regional Survey de Hugh D Hindman e Hugh Hindman.
