Linguiça com Trema, de Porco e Alho

O título é por conta de um comentário que recebi no Twitter: linguiça sem trema não tem o mesmo sabor. A vontade de fazer linguiça veio durante o final de semana, assistindo a aula da Monica Rangel, conversando com o Eduardo Maya.

Antes de mais nada, vou repetir o que a Monica Rangel disse em sua aula: linguiça artesanal não é produto comercializável. Pelo menos diante das normas atuais. A Anvisa exige que as linguiças comercializadas tenham sal de cura e use apenas ervas secas. Em casa temos a liberdade de não usar esses ingredientes, mas também temos a obrigação de sermos cuidadosos com a manipulação e conservação: higiene, acima de tudo e se não for consumida logo, é preciso congela-la.

Por outro lado, não há sentido em tentar fazer em casa um produto idêntico a um industrializado. Não vai sair mais barato, é preciso apelar para uma série de aditivos como o sal de cura, ligatari (uma substância que, basicamente, serve para manter a água dentro da massa da linguiça), corantes, etc. Por outro lado, um produto caseiro também não vai usar proteína de soja, carne mecanicamente processada e uma quantidade absurda de água. Sim, as normas permitem, em certos casos, o uso de materiais que mais servem para aumentar o peso e volume do que sabor.

Portanto, quem pretende fazer linguiça para comercializar, informe-se junto à vigilância sanitária ou algum órgão que cuide disso. Neste post vou falar apenas de um prato que é para ser consumido fresco e sobre o qual a responsabilidade pela qualidade é de quem produz.

Na aula da Mônica Rangel o Eduardo Maya sentou-se do meu lado e ele comentou que faz linguiças picando a carne na faca. Para pequenas quantidades, é uma opção boa, já que não exige o moedor que nem todo mundo está disposto a comprar. Outro ponto a favor é a textura. Por mais que se use um disco para moagem grossa, o fato é que a carne moída fica amassada e a textura acaba ficando a de carne “mastigada”.

Já na aula do João Rural, ouvi que comida caipira não usa cebola, tomate. Basicamente, só se usa alho. Isso tudo me fez lembrar de uma linguiça que comi na infância, daquelas que antigamente se vendia nos açougues. O sabor de alho era muito forte e levava só isso e pimenta. Voltei para casa e minha mãe confirmou: quando ela bem mais jovem, fazia linguiça de porco só com alho e pimenta do reino. A essa altura, acho que deveria chamar essa linguiça de linguiça Paladar – Cozinha do Brasil, já que tantas coisas que vi nesses 3 dias se juntaram na reconstituição dela.

Para cada kg de carne de pernil de porco limpa e picada em cubinhos bem pequenos – cerca de 1/2 cm, usei 250 gramas de gordura de toucinho picada e triturada no processador de alimentos. Para cortar a carne tão miúdo, além de uma boa faca, coloquei a carne no congelador até ela firmar bem sem congelar por completo. Foi bem mais fácil. Mas se preferir, moa no moedor com o disco com buracos bem grandes, para ter uma carne moída grosseiramente.

Adicionei 12 gramas de sal, 6 dentes de alho, suco de 1/2 limão cravo, 100 ml de água  e muita pimenta do reino moída grossa. Também coloquei um pouco de pimenta vermelha. E, como não podia deixar, acabei apelando para uma orientalidade e usei a pimenta coreana, que dá mais cor que ardência. Mas não é obrigatório, use se gostar e a pimenta que gostar.

Para fazer a correção dos temperos, aqueça uma frigideira pequena e frite pequenas porções da massa. Não prove a massa crua. Além de não ser seguro, o sabor da carne crua é uma coisa e dela cozida é outra. Lembre-se de manter sempre a carne bem gelada. Além de ser mais seguro – o risco de desenvolver algum agente patogênico nela é menor – as carnes moídas, quando sovadas, misturadas, sobretudo as menos resfriadas, tendem a empelotar, virar uma massa mais pesada.

Isso é só uma orientação básica. Nada impede de que você utilize ervas, troque a água por vinho, suco de fruto, coloque um pouco de cachaça, acrescente cogumelos ou outro ingrediente que gostar. Também não é obrigado a usar tanto alho, é só uma questão de gosto.

Deixe descansar uma hora na geladeira e enquanto isso hidrate as tripas. Eu uso tripas salgadas e calibradas. Comprei na G Frederico, que tem um box no Mercado Municipal de São Paulo há muito tempo e tem sobrevivido muito bem em pote fechado, na geladeira. Existem tripas de espessuras diferentes, fica a seu critério usar a grossa, média ou fina. Só recomendo a calibrada porque ela vai ter um diâmetro regular em toda extensão. Usei uma média porque acho que ela tem uma espessura que garante tanto um cozimento rápido quanto uma linguiça úmida por dentro. Eu lavo as tripas para retirar o sal e deixo de molho em água com limão.

Para encher as linguiças usei um aparelho que parecem um revólver, tem um gatilho e um pistão que vai empurrando a massa por um tubo. Creio que já vi em lojas de utilidades domésticas, coisas para cozinha, mas não tenho certeza. A Monica Rangel usa um canhão com uma manivela. Também pode ser utilizado o moedor de carne com um funil próprio acoplado. E já ouvi falar de quem use apenas o funil, com uma certa dose de paciência.

A fase seguinte é deixar um dia ou dois na geladeira para a linguiça secar um pouco. Coloque as linguiças sobre uma grelha ou apoio, para que não tenham contato com a água que se solta. Depois disso, embale e congele. Outra opção é defumar, se tiver defumador. E antigamente simplesmente pendurava-se sobre o fogão à lenha, que nunca era apagado e virara uma linguiça curada, levemente defumada.

Dá trabalho, não vou negar. Mas tem lá suas compensações: produto feito com carne de porco e gordura, sem aditivos, com sabor e texturas que não existem nos produtos industrializados.

E volto a avisar: quem pretende fazer linguiça para vender, procure algum órgão específico e os aditivos e até receitas podem ser encontrado nos sites de fabricantes de produtos para embutidos, como o Laboratório Exato e a Dourado. Creio que vi gente que comercializa até DVD de como fazer linguiça. Vão atrás deles e boa sorte, porque esta receita, sem aditivos, é para consumo doméstico e mesmo assim, os riscos de contaminação ficam por conta de quem produz e consome.

 

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25 Responses to Linguiça com Trema, de Porco e Alho

  1. Akemi diz:

    Ontem mesmo estava revendo um Ururun (não sei se vc chegou a ver esse programa no Japão) na Suiça onde a família produz linguiça caseira e já fiquei com uma vontade danada de comer e agora vendo a sua caseiríssima, que delícia hein! Hoje em dia as industrializadas não tem gosto de nada mesmo e invejo pessoas como vc que tem essa habilidade e talento! Imagina essa linguiça com shiro gohan??? Não precisa de mais nada! 😉
    Bjss

    • Marisa Ono diz:

      Ontem levei um pouco de linguiças para uma amiga e ela usou a expressão “goham dorobo” (ladrão de arroz) porque come-se mais arroz com um pedacinho de linguiça…

  2. Gilda diz:

    O que mostra, na hora, que a linguiça é “de verdade”, como as que a vovó fazia, é este douradinho que pega quando vai ao fogo. O cheiro é outra coisa, a textura fica maravilhosa, tem gosto de comida de infância, para nós que tivemos a felicidade de sermos infantes antes das normas bem intencionadas, mas trapalhonas. Delícia pura.

    • Marisa Ono diz:

      Gilda, você já reparou que as linguiças frescas soltam uma quantidade absurda de carne quando cozidas ou grelhadas? Não é água da carne, é água que colocam para aumentar o volume e peso. Linguiça caseira não solta tanta água e continua úmida por dentro. Claro que se for usar uma tripa mais fina ela tende a ser um pouco mais seca. Vamos ver se a Anvisa vai perceber que está matando nossa cultura criando certas normas. Porque uma linguiça sem aditivos, hoje, pode ser bem segura. Basta haver manipulação correta e boa conservação. Isso exige seriedade de quem produz e boa orientação.

  3. Gilda diz:

    Só os especialistas da Anvisa é que não enchergam os erros e injustiças que cometem. Será que por comodismo? Pressão da indústria? Acho que nunca, tanta gente séria e influente gritou tanto, em coro, para que haja uma reavaliação destas normas. É verdade que precisa haver segurança para o consumidor, mas não a custa de outro tipo de prejuízo. Vamos acreditar que isto será mudado. É preciso que o consumidor também exija, em vez de ser levado a gostar de um produto inferior.

    • Marisa Ono diz:

      Sim, Gilda, há um movimento muito bom que visa a preservação de nossa cultura e a segurança do que comemos. E isso engloba muita coisa, desde comida de rua, que está desaparecendo em muitas cidades, como o que encontramos no mercado. Porque se continuar assim, vão exigir que tudo que comemos seja irradiado, exatamente como a comida dos astronautas… ¬¬

  4. timoteo diz:

    ola bom domingo me diga amiga o que é trema -agradeço

    • Marisa Ono diz:

      Segundo o Michaelis: Sinal ortográfico constituído de dois pontos dispostos horizontalmente (¨) que se colocava sobre uma vogal para indicar que ela não formava ditongo com a vogal antecedente. Até recentemente linguiça se escrevia “lingüiça”.

  5. Carlos Alberto Chaves diz:

    Que bom que tem pessoas que ainda luta para que não percamos a nossa tradição, da boa e velha comoda cazeira e feita com aceio.Manipulamos diversos tipo de comidas e não fuimos da qualidade, basta que diminuimos o tempo de validade.Não vamos podemos deixar que as industrias empurre na gente um monte de porcaria, sendo que o caseiro fica com um melhor sabor. Bom Dia!

    • Marisa Ono diz:

      Carlos Alberto, creia, muita gente entra em contato comigo perguntando como fazer linguiças industrializadas, onde comprar aditivos, etc. Tento dizer que não é por aí. Esses aditivos precisam ser usados com muito cuidado. Com esse post apresentei a linguiça caseira, para ser comida fresca ou congelada, sem sal de cura e emulsificantes, na intenção de resgatar esse sabor que está desaparecendo.

  6. aldecy diz:

    boa noite qual o prazo de validade da linguiça caseira

    • Marisa Ono diz:

      Aldecy, não sei o prazo de validade. Sem sal de cura, a linguiça precisa ser congelada e consumida o mais o mais rápido possível. Fica valendo o bom-senso.

  7. Eleide diz:

    Bom dia Marisa,
    Tenho seguido suas orientações para o preparo de linguiça pois pretendo faze-las para vender, porém, não estou conseguindo passar as carnes pelo moedor (estou usando disco 10). A carne está saindo mais pra processada do que pra moída. O que estou fazendo de errado? E outra coisa: usei 1kg de carne e isso me rendeu 800grs de linguiça pronta. É isso mesmo? Perde-se tanto assim?
    Muitíssimo obrigada pela sua atenção. Abraço, Eleide

    • Marisa Ono diz:

      Desculpe-me, Eleide. No caso de linguiças para vender eu não posso ajuda-la. Você deverá procurar informações sobre normas junto à Vigilância Sanitária. Quanto ao problema da carne ficar processada, você não esclarece se ela já foi moída ou não. E também não entendo porque a linguiça rendeu menos, já que adiciona-se temperos e, se utilizar emulsificantes e outros aditivos, também adiciona-se água. Não tem como matéria evaporar.

  8. Roberto diz:

    Boa noite Marisa. Estou lendo e tentando aprender o fazimento de linguiças. Suas lições tem sido de grande valia, mas ainda tenho muitas dúvidas que sòmente o tempo e o estudo irão resolver.Mas, se puder me esclarecer alguns tópicos ficaria grato. Pergunto: posso usar temperos ao natural ao invés de desidratados?Ou haveria perda de sabor ou alteração do produto final? Agradeço desde já se puder me orientar. Obrigado

    • Marisa Ono diz:

      Eu tenho receio tanto pela qualidade quanto pela conservação. Já experimentou deixar salsa, alho, temperos picados na geladeira por alguns dias? Eles mudam de cor, de aroma, soltam água, estragam com facilidade. Secos (desidratados ou liofilizados) são bem mais seguros.

    • Marisa Ono diz:

      Eu tenho receio tanto pela qualidade quanto pela conservação. Já experimentou deixar salsa, alho, temperos picados na geladeira por alguns dias? Eles mudam de cor, de aroma, soltam água, estragam com facilidade. Secos (desidratados ou liofilizados) são bem mais seguros.

  9. Ano Nimo diz:

    Marisa, você deveria ser canonizada e beatificada devido sua paciência e prestesa em responder algumas das pérolas que lhe são enviadas… são perguntas que por muitas vezes já foram explicadas no post… existem vários compatriotas que têm preguiça de ler e vão direto lhe perguntando quando a resposta já está lá para eles, de mão beijada… sem falar nas perguntas técnicas e administrativas em outros posts que acessei em seu blog (como operar a máquina de moer linguiça, a que preço devo vender a linguiça…) em duas delas eu me escancarei de rir: “o que é trema?” aaaaaaaiii meu Deeeeeus!!!! Eu imaginei o cara indo no supermercado e perguntando se os caras vendem trema pra fazer linguiça ahehehehahehaehaeh. A outra pessoa bota 1kg de carne em um lado do moedor e do outro lado saem somente 800g. Pronto! Acabamos de inventar o desintegrador de matéria! Esta colega está perdendo tempo na cozinha! Deveria estar no MIT em Boston!

    Continue assim com esta paciência budista e esta precisão samurai! Parabréns pelo blog e principalmente pelas respostas certeiras!

    • Marisa Ono diz:

      Ano Nimo ou Anônimo? Vivo brincando que eu sinto-me como “Marylin Vos Savant”. Acho que as perguntas estranhas e até descabidas feitas nos comentários deste renderiam um livro. Eventualmente nem publico algumas perguntas porque elas são incompreensíveis: sem vírgula, ponto, sem pé nem cabeça. Mas sabe onde a desgraça realmente acontece? Na minha caixa de entrada do correio eletrônico. Já vi de tudo por lá. A mais comum é empresa mandar artigo como “sugestão de pauta”. Tem blogueiro que publica sem trocar uma vírgula, deve ser por total falta de assunto. Também algumas empresas oferecem amostra de produto, mas como aviso que não me sinto obrigada a escrever sobre ele, não insistem. Também tem dono de restaurante pedindo receita, querendo que eu elabore cardápio inteiro e outros tantos favores. De graça, claro.

  10. guilherme diz:

    Domo Arigato Gozaimashita anata no ringisa no kurasu.
    Watashi no uti de chotto machi oichi ringisa benkio shimasu.
    Bahia-no Guillemxxi

  11. valdir diz:

    Boa tarde,
    Marisa fiz varias de suas receitas e ficaram muito boas, fico muito grato.
    Estou procurando receta de linguiça portuguesa defumada voce tem ? gostaria
    muito de fazer em casa já até comprei as tripas e os condimento, ficaria mui-
    to grato se voce me enviar o meu email valdir_inox@yahoo.com.br bjs.Valdir .

    • Marisa Ono diz:

      Valdir, nunca fiz linguiças portuguesas defumadas. E não costumo enviar receitas por e-mail, tudo que escrevi até agora está disponível no blog.

  12. Marcu diz:

    Oi eu faco linguiça em uma maquina de moer carne como furo grande mais FICA seca e se ponho mais gordura as vezes comeca bem e depois parece um pate a carne FICA pastosa e continua seca, a gosto e bom o problema e so porque e seca, estou na China e aqui a linguiça e doce ninguem mere é, o que que eu faço, vou ficar muito agradecido

    • Marisa Ono diz:

      Leia o post completo, Marcu. Eu não uso moedor para encher as linguiças exatamente por esse problema. Procure uma pistola de encher salsichas ou tente encher usando um funil, empurrando a massa para dentro da tripa.

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